A língua é viva e pertence ao agora.
O Pai é uma obra que data de 1887, portanto inserida num momento histórico da Suécia que já contava com alguns avanços provocados pelo desenvolvimento, social, científico e tecnológico da segunda metade do século XIX. Ainda assim, Strindberg decide inserir sua narrativa numa obscura moradia da área rural-militar, longe dos grandes centros e suas facilidades.
A tradução e adaptação do texto que chegou a esta encenação, cuja estreia se deu em abril de 2022 no Teatro João Caetano de São Paulo, é resultado de um esforço coletivo. Primeiro por impulso da idealizadora do projeto, Tatiana Montagnoli; depois por força da minha determinação em mais uma vez traduzir Strindberg (a partir do inglês e do francês, com apoio de outras versões para o espanhol e italiano, como fizera ainda nos anos 1990 em Rumo a Damasco); finalmente pela perspicácia e inteligência de um elenco e direção focados em extrair da obra sua mais completa atualidade.
Uma efeméride norteava o projeto; quando tudo começou, em 2017, a obra completava 130 anos. Tínhamos nas mãos a difícil tarefa de sua atualização em várias camadas, especialmente a linguística. Assim, o primeiro tratamento da tradução, iniciado ainda naquele momento, ganhou algumas versões feitas por mim, solitariamente, até 2019 com o início das primeiras leituras realizadas com o elenco, já sob a batuta de Regina Galdino. A partir daí, finalmente, nos primeiros meses de 2020 iniciamos o que chamamos de “trabalho de mesa”.
É preciso ressaltar que, nessas leituras, muitas sugestões foram sendo feitas pelo elenco, com o objetivo de rever a embocadura do texto para sua função cênica – e devida adequação aos propósitos da direção. Esse rico processo contou com a participação ativa do grande ator Rubens Caribé, cujas contribuições para a pesquisa dos vários aspectos do texto foram inestimáveis. Infelizmente, Caribé nos deixou em 2022 sem ter conseguido concluir o seu Capitão Adolf.
Mas esse rico trabalho de revitalização da obra teve de ser interrompido. Foi quando nós – e o restante do mundo – fomos pegos de surpresa, pela pandemia de COVID-19. Dois anos depois, voltamos a lidar com o texto e já não éramos mais as mesmas pessoas. Aquele texto do século XIX ganhara novas feições e contornos aos nossos olhos, não apenas diante da pandemia, mas também e principalmente diante da situação política que o Brasil e o mundo passaram a enfrentar (principalmente no que tange ao duro projeto de desmonte da Cultural nacional do governo bolsonarista).
Cada vez mais, questões como masculinidade tóxica, construção de machismo estrutural, distorções da fé e da ciência eram assuntos em pauta e necessários para o entendimento das instituições e decorrente conservadorismo na contemporaneidade.
Assim, a tradução se atualizou, absorveu cada sugestão feita de modo a não trairmos nem o pensamento do autor nem tampouco nosso entendimento dele. Estive ao lado da direção e do elenco diariamente fazendo a interface com as muitas traduções existentes: inglês, francês, espanhol e até mesmo no original sueco em situações específicas. Recorremos a versões diversas – especialmente as latinas – para questões prosaicas como as de tratamento até os nomes dos personagens.
Por fim, durante a temporada, em meio ao processo vivo da repetição da obra, me deparei com uma agradável surpresa: um registro do texto em LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) agregou um novo vocabulário e novas significações à obra.
Assim, de tradução O Pai passou a versão e, daí, se tornou adaptação. Adequou-se aos nossos dias como organismo vivo e expressivo da atualidade. Uma modernidade que Strindberg almejava e certamente merece para sua obra.