07

May

O Pai, de August Strindberg

“Como saber o que se passa no cérebro dos outros?”
 
Ao pesquisar August Strindberg, largamente referendado como o Shakespeare da Suécia, nos deparamos com inúmeras qualificações e inferências: realista/naturalista, simbolista, expressionista? Em qual estética, movimento ou gênero enquadrá-lo? Misógino, machista, livre pensador? 

Mas na visão e entendimento de muitos pesquisadores e estudiosos, mais do que enquadrá-lo ou encaixá-lo em gavetas estéticas e morais, o importante é verificar sua atualidade ao longo de mais de um século, e na atualidade: estes tempos em que tantos de seus temas são ainda discutidos dos salões acadêmicos aos parlamentos das democracias. 

Strindberg inspirou outros autores durante seu tempo e pelo século XX. Foi também inspiração declarada do cineasta Ingmar Bergman – especialmente em seu Cenas de um Casamento. E finalmente, influenciou trabalhos teóricos de pensadores como Georg Lukács, Peter Szondi e Raymond Williams, referências que precisam ser visitadas e citadas. 
Em primeira análise, o pesquisador Luís Paulo da Silva aponta que O Pai se encontra no que mais tarde viria a ser conhecida como dramaturgia do eu, devido ao seu forte apelo subjetivo. Do ponto de vista da ‘carpintaria teatral’ é uma sucessão de cenas criadas com o objetivo de encadear fatos e acontecimentos aparentemente banais reverberados em conversas familiares típicas do século XIX, de conteúdos quase prosaicos. Ao mesmo tempo, tudo depende do raciocínio lógico de um só indivíduo – o Capitão Adolf, 

“homem que só conhece seu próprio ponto de vista, ele é a estrutura que verdadeiramente sustenta a ação e, por isso mesmo, tudo o que é mostrado se passa apenas na visão desse personagem central – o desencadear dramático depende de um olhar subjetivo, não tem existência objetiva. Além disso, diferentemente do que acontecia na tragédia antiga, em O Pai não vemos um herói que participa de uma comunidade no interior da qual transcorre a ação, mas sim um herói cristalizado e desviado de qualquer correspondência com o mundo entendido enquanto totalidade; a única totalidade encontrada é aquela vivida pelo personagem central.” (Luís Paulo da Silva)

 
Strindberg com O Pai rompe com as ideias da tragédia e mesmo do drama canônico (aquele que nasce com o Renascimento e se consolida em Shakespeare, se perpetuando até o século XX no drama burguês da pós-industrialização) problematizando questões que, pouco tempo depois, indicariam estéticas modernas como o simbolismo e o expressionismo.  

Peter Szondi, em meados do século XX, numa de suas mais importantes dissertações sobre o moderno drama, anuncia que Strindberg abalou as estruturas da dramaturgia convencional em várias de suas peças e, ainda que de modo aparentemente convencional e discreto, o fez em O Pai. Tal subjetividade viria a se aprofundar em obras posteriores. No ano de 1886, Strindberg declararia: “acredito que a descrição integral da vida de um homem é mais verdadeira e reveladora que a da vida de uma família inteira.” E prosseguiria questionando a capacidade de um autor sobre “como saber o que se passa no cérebro dos outros, como conhecer os motivos encobertos do ato de um outro, como saber o que este e aquele disseram em um momento de confidência?” 

Strindberg conclui dizendo que só se conhece uma vida, a sua própria; um único ponto de vista. E, em termos de estrutura dramatúrgica, é desta maneira que a obra sobre o conflito entre pai e mãe se organiza. É uma história até certo ponto simples, um tanto folhetinesca aos nossos olhos: um casal que vive um conflito abalado pela ideia de paternidade – nunca uma certeza na vida de um pai daquele momento histórico – em que ambos, mãe obstinada e pai empedernido, entram em disputa feroz pela educação e destino da filha.

O Capitão Adolf, que abandonara um futuro de sonhos e luxo para se envolver com as questões prosaicas da vida na caserna, dedica-se como válvula de escape a certos delírios científicos. Esse homem se encontra, em suas próprias palavras, cercado por mulheres que em sua opinião são incapazes de gerir as suas vidas e escolhas: a sogra (personagem inexistente na ação e que vive demandando cuidados enquanto influencia a neta para uma vida de atividade espírita), a velha criada da casa que fora sua babá e hoje tenta ser uma espécie de conselheira mas que para ele está no fim da vida, a filha que deseja ser artista e se divide entre as várias opiniões da casa sobre seu destino e, por fim, a esposa Laura que aparentemente em tudo depende do marido. 

Este emaranhado de perfis não chega a ter profundidade psicológica, são figuras que existem mais como objetos expostos do intimo do protagonista. Agregam-se ainda os três personagens masculinos da narrativa: o pastor Jonas (representante nítido do pilar religioso da sociedade), o Doutor Ostermark (médico e dúbia figura de comunicação do Capitão com o mundo cientifico) e o soldado (personagem pequeno, mas metáfora das obsessões de Adolf sobre paternidade). Portanto, como apontaria Anatol Rosenfeld, “se é possível conhecer apenas o próprio íntimo, é escusado fingir que se conheça o de outrem”. Equivale dizer que, desse modo, os acontecimentos da ação surgem como faces projetadas do íntimo do protagonista. Especialmente quando “a mente se torna fraca e influenciável”, nas palavras do Doutor Ostermark. 

No século XIX, o patriarcado, que parecia uma rocha sólida e irremovível, podia se tornar frágil e facilmente abalável quando o assunto era paternidade. A figura masculina, detentora do poder familiar, (neste caso, Adolf, Capitão de Cavalaria e dublê de cientista), posiciona-se ladeado pelo pastor, o médico e o soldado, em quem procura apoio e cumplicidade. Já as figuras femininas (a esposa Laura, a filha Bertha e a criada Margret), que poderiam simplesmente significar personagens submissas, manipuladas por Laura, formam uma força silenciosa, capaz de subjugar o capitão e influenciar o pastor e o médico. Entretanto, de nada vale a força masculina diante da dúvida que a esposa inculca no marido: será Adolf o pai de Bertha? Tal questionamento transtorna o pai, numa guerra sem vencedores nem heróis. O que existe é o persistente evocar de fantasmas e lembranças que perturbam a ele e circunstância da qual Laura tira proveito. 

Adolf faz questão de assumir o controle sobre o futuro da filha, com a propostas de entregá-la a preceptores longe do ambiente da casa. Já a mãe insiste que ela própria deve conduzir a vida da filha, ainda que para isso se aproveite da vulnerabilidade masculina e agrave a saúde mental do marido. Aliada ao irmão (o pastor Jonas) e ao médico, ela urde um intrincado estratagema para tornar o marido incapaz de tomar decisões. A partir daí, o tema shakespeariano do homem perturbado por seus próprios fantasmas e pela “gota de veneno” pingada em seus ouvidos vai nortear todas as ações de Adolf. 

Como já dito, de forma bastante aristotélica, a ação se passa com austeridade em um único ambiente e supostamente num arco temporal fechado. São, como dizem alguns estudiosos, “sucessões de presentes absolutos” encadeados entre si. Apesar de poucas, existem algumas significativas construções narrativas sobre o passado – elas servem como suporte para a construção do comportamento das personagens centrais. Podemos saber um pouco sobre o passado da criada Margret, um tanto sobre a vida pregressa do casal (como se conheceram e se uniram) e uma parcela significativa da mocidade deste Capitão de Cavalaria. E, apesar de momentos em que a narrativa se afaste do tempo presente, por meio de memórias e reminiscências, a encenação de Regina Galdino se mantem firme na busca das desejadas coerência, agilidade e coesão da ação. 
É muito interessante ler o estudo de Luís Paulo Silva em que ele avalia (a partir de Lukács) as questões relativas à transformação do homem antes, como herói da epopeia – inspirado e acompanhado em seus caminhos pelos deuses –, até a chamada “demonização progressiva” sofrida, segundo George Lukács, pelo herói do romance moderno: “a psicologia do herói romanesco é a demoníaca”. (Peter Szondi)

De fato, o Capitão Adolf se aproxima mesmo do demoníaco e seu papel de herói chega perto da demonização. “Podemos dizer que seu aspecto demoníaco também surge como reflexo da cisão da unidade entre homem e mundo” afirma L.P. Silva, lembrando que o próprio Strindberg chega a declarar: “Desde minha infância busquei a Deus, mas só encontrei o Diabo”.

O capitão é tomado por louco, ao ponto de sua própria esposa decretar: “Meu marido é um doente mental”. Portanto, se tal demência for compreendida como mundo particular e alheio à realidade factual, fica mais acentuada a lógica pessoal e subjetiva do personagem que, a cada cena, se encontra mais enredado em seus pensamentos e menos comungado com o mundo objetivo que o cerca. 

Agrega-se a tudo isso, os martírios pregressos do personagem. Sua intuição de que fez escolhas erradas e que, no momento em que se encontra, não há caminhos de volta ou reconstrução. A única esperança possível é o futuro representado pela filha, Bertha. Esta, de sua parte, sonha ser pintora e trafega entre sobressaltos causados pela avó doente – que a obriga a exercitar psicografias – e a criada Margret que a assombra com pensamentos místicos cristãos. Sim, religião e sociedade são temas caros ao autor e, em O Pai, são explorados de forma a tocar o sobrenatural. O que não é uma novidade, uma vez que Strindberg, há muito, transitava entre círculos de investigação mística e sociedades ocultistas da época. Existem sinais de que a jovem Bertha teria sido inspirada na pintora abstrata Hilma Af Klint cuja obra é, até nossos dias, cercada de mistério e fenômenos obscuros (leia texto sobre a pintora no blog do site). 

Há muito que se ler e estudar sobre August Strindberg e sua obra O Pai, que apresenta personagens complexas, ambíguas, nada idealizadas e com profunda dimensão humana. Criaturas que lutaram desesperadamente para entender uma nova sociedade que ainda era embrionária, com o desenho de novos papéis sociais para homens e mulheres.

(...) minha tragédia O Pai foi criticada por ser demasiado triste - como se alguém quisesse tragédias alegres. Toda a gente clama pela alegria de viver e os empresários teatrais pedem, o tempo todo, farsas, como se a alegria de viver consistisse em ser ridículo, em pintar os seres humanos como se sofressem da dança de São Vito ou de imbecilidade crônica. Pelo que me diz respeito encontro alegria de viver nas lutas rudes e cruéis da existência, no prazer que sinto em aprender em ampliar meus conhecimentos das coisas.

August Strindberg / No prefácio de Senhorita Júlia /

 

Fotos por João Caldas